quinta-feira, 10 de março de 2011

dossiê dum milhão de mulas



Um milhão de mulas tristes purgam feridas.
Um coração adormece, um outro se esconde do sangue, 999.998 comem da longa alameda de um só coice na paisagem. Por necessidade de depuração que só a ata depurada faz-se ao necessário do bicho.
Porém antes da necessidade prática, faltará amplidão ao que é necessário:
Reter caminhos, vozes e dores rentes e poentes. É a carga. A carga.
Quem vê de perto os olhos de uma mula de carga
vê também todo o resto do mundo se despedaçando em palhas queimadas e queimaduras-palhas e paúras tantas: A carga.
São olhos de uma saudade cheia de hematomas no quentume.
Olhos que piscam com a mesma velocidade da palha despedaçada em mundos e paúras já em método de cinza abrasada em queimaduras tantas insistindo o pirilampear no céu, não quer cair, não se entrega, não apaga o pairar.
Olhar delicado, trinco dum sono, trincada porcelana de mau gosto do sal atirado pelo vento.
Uma mula é um antitemplo onde as orações também são mulas e a resignação, por conhecimento e encampação, é o único esquelético milagre no pico e no sopé do que seja milagroso;
na mula até o milagre precisa de um milagre porque a carga. A carga.
A mula foi condicionada a não ver estrelas nem borboletas muito embora saiba e force um ignorar (tudo num mesmo tempo que é o tempo de mula, tempo cargueiro em mesmices) isso de que elas sim, as borboletas e as estrelas a vêem, a perseguem esbanjando levezas, cardume puritano de rastros de grandezas que longe e que longe.
Mulas não sentem flores nem picadas de abelhas e no lugar nu de em sentir, sentem um do que como se fosse esse sentir, como se pisassem com a língua e andassem com o vago e sendo isso e dessa maneira, mulas não sabem do capim o sabor que ruminam e às vezes nem se enfrentam do ruminar o mato ruminando o tanto de chistes que o destino lhes picam feito picão ferrado de abelha em flor.
Seus Senhores raspam-lhes as feridas com cacos de telha, já que alguém disse que telha é cicatrizante, mas só pra mula, esse bicho quiromante. O Sol e o Sal completam o curativo.
E eis que as mulas cantam, Meu Pai!
As mulas, na madrugada do sertão, nas pequeníssimas matinas argilosas cantam pedras, poeira e a reta dos homens. A carga.
Dizem que essas árias flutuam feito torpes orbes, ararinhas faiscantes e então explodem em sequiosos flocos de um sertão em algodão que tem a pele à pele e da pele reza o chão,
eterno namorado da mula, bicho menos ativista que eu já vi.



Julinha D.

Um comentário:

C. Cardoso disse...

Texto lindo. Felizmente que hoje se vai olhando para os animais com olhos de gente com alma.
Um abraço