quinta-feira, 10 de março de 2011

ao dossiê dum milhão de mulas



Sobre as mulas. Gosto delas, tenho certa admiração quase sem carinho. Quase sem carinho porque a mula tem mais de mineira do que a vaca, por exemplo, e não deixa muitos espaços para se entrar o carinho.
Mulas não são como os bodes, são boas e pacatas, mas são, sim, de medida paciência. Já os bodes têm por inventar forma de o homem temê-los. As mulas são caprichosas.
Mulas não têm nos olhos aquela coisa pacienciosa e clara que existe nos olhos da vaca. De uma vaca pode-se saber o todo olhando para os olhos. Duma mula, para se saber, tem de se olhar ao perfil e esperar.
Esperar porque ela levará sabidos minutos para ceder o soslaio. E, de uma mula esguia olhando-nos em soslaio, sabemos o tudo. Sim, a personalidade de uma mula é perfilada; uma mula de frente é não além de um bicho assemelhado a um cavalo de paciência por se acabar. Uma mula de soslaio observa-nos, ao que deve, pois, ser o preciso feito para observá-la. A vaca é humanizada, e a mula é personificada. Veja que a vaca é uma senhora, sempre a mesma senhora, todas as vacas carregam no debruçar dos olhos e na curva da boca a mesma senhora (todas as senhoras carregam nos traços a mesma senhora?) - daí a humanidade da vaca - ou a coisa materna. A mula é uma espécie feminina e é o certeiro mote da espécie que é feminina - sendo sempre uma outra coisa feminina de que não se pode dizer onde traz a semelhança com as demais - mesmo esta, a semelhança, havendo clara - daí a personificação - ou a coisa que não tem filhos e, portanto, que não se pode aparentar humana nas idades.
Pode-se, facilmente, confundir uma mula com um cavalo. Não com uma égua, nunca com uma égua, que trata de outro vasto departamento. E, quando se confunde uma mula com um cavalo, ela porta-se como tal, até persistindo na aproximação. Compadecemos da mula como compadecemos do cavalo que carrega um desavisado semblante masculino (este também com humanidade, porque os cavalos são sempre, de traço, de olhos e de quadril, o mesmo homem). A mula pode te ceder uma inteira cavalgada quando se acha que ela é um cavalo. E, se dermo-nos conta da mula ser uma mula a esta altura, ela desonra-nos. Há o risco duma mula amedrontar um indivíduo numa certa ocasião descuidada: se se aproxima da mula acreditando ser um cavalo e der por conta de ser mula no preciso desfecho dela lhe estar de soslaio - à rara fenda de sua personalidade - ela vai ameaçá-lo e espantá-lo em irrefutável desonra. Um indivíduo desonrado por uma mula leva cerca de quatro dias para retomá-la ao bem do estado comum de pasmaceira. Durante os quatro dias, a mula mantém-se incapaz de parecer cavalo e pratica no indivíduo um distanciamento forçoso - nos quatro dias ela preserva hábitos assemelhados aos do bode.
Toda mula traz características virginianas.
A mula não é teimosa, é correta e metódica, paciente e sabida, tendo demasiada propriedade daquilo que pratica.
A mula parece teimosa até que entendamos o que há de seu feminino a guardar-se de masculino.
Ao contrário dos cavalos, as mulas não esticam os olhos docemente ao horizonte quando correm, as mulas olham para perto. Isto porque não podem esperar filhotes.



Nelson G.

4 comentários:

nina rizzi disse...

arre égua
nina rizzi

era por fome que a pequena se exauria no animal,
a vegana e seu animal.
rasgava as vestes, esfaimento de menina:
desaparecer embrenhada mato adentro,
fugir enlouquecida de arames farpados, farpas de [mães,
falo de pais.

sim, nua a cavalo, como ao jogo ovidiano:
num eterno cavalgar, se roçar por pelos suores
o seu amante, sua domisticidade, crescência.

assim se fez grande, animal faminto,
fugidia, selvagem, de quatro (ou mais) só [estrógeno:
louca pra não ser pouca, engolidora, ôrra!
mulher, mulher, mulher.
*

C. Cardoso disse...

Olá gato Nelson amigo do Jeremias...
Com tanto bicho por aqui ainda arranja tempo para fazer amizade!
Gostei do seu comentário. Gostei deste blog.
Acho queu vou ficar a perceber um pouco sobre a natureza das mulas (daquelas que não dão filhos).

Bípede Falante disse...

Nelson, nem me fale em mulas, que eu queria ter é um milhão de amigos!!! rs rs
beijos

Patrícia Gonçalves disse...

Interessante, as amigas podem ser vacas, mas nunca mulas...

Tô adorando a leitura!