sexta-feira, 18 de março de 2011

dossiê das girafas, não há uma



Uma girafa nunca há. Estas, assim, consentem-se a designações entre si pelas alturas: entre os gêneros e para o líder. O macho parece-se com o humano que ama, sendo de maiores corpos que a fêmea. A proteção. Despenca-se muito amor para reconhecer o mais alto entre as girafas: é difícil sentir-se protegido quando se possui dessa altura. Protege um grupo de girafas aquele que quer olhar a todos os lados. O humano possui mais vértebras que a girafa. É arriscado ventar, deve haver sempre o macho que ore arrependido aos céus. O corpulento macho inocente. A girafa deve permanecer iludida e é curiosa: despenca-se muito amor para desenhar uma girafa: crianças e senhorinhas de bem, entretanto, fazem-no com propriedade. Pois é difícil sentir-se protegido quando o vento, curiosamente, deserta-se: há de voltar – dizem.
As girafas pastam ou recolhem águas na posição dum cachorro que brinca: abaixam sobre abertas as patas frontais e alegram-se. O pasto e as águas são elementos para a ilusão: as girafas aparentam humanos que amam.
Sobretudo, este fato insistente, verdadeiro: a girafa é um animal doméstico. Todavia, desvia-as de nossos quintais a improvável paciência. É necessário ter demasiada paciência para as coisas que ocupam demasiado espaço. Despenca-se assaz amor para se criar a girafa: crianças e senhorinhas de bem, conquanto em idades inapropriadas para despencar paciência aos homens, tomaram-nas por desenho. Amáveis, assaz – dizem.



Nelson G.

quinta-feira, 10 de março de 2011

ao dossiê dum milhão de mulas



Sobre as mulas. Gosto delas, tenho certa admiração quase sem carinho. Quase sem carinho porque a mula tem mais de mineira do que a vaca, por exemplo, e não deixa muitos espaços para se entrar o carinho.
Mulas não são como os bodes, são boas e pacatas, mas são, sim, de medida paciência. Já os bodes têm por inventar forma de o homem temê-los. As mulas são caprichosas.
Mulas não têm nos olhos aquela coisa pacienciosa e clara que existe nos olhos da vaca. De uma vaca pode-se saber o todo olhando para os olhos. Duma mula, para se saber, tem de se olhar ao perfil e esperar.
Esperar porque ela levará sabidos minutos para ceder o soslaio. E, de uma mula esguia olhando-nos em soslaio, sabemos o tudo. Sim, a personalidade de uma mula é perfilada; uma mula de frente é não além de um bicho assemelhado a um cavalo de paciência por se acabar. Uma mula de soslaio observa-nos, ao que deve, pois, ser o preciso feito para observá-la. A vaca é humanizada, e a mula é personificada. Veja que a vaca é uma senhora, sempre a mesma senhora, todas as vacas carregam no debruçar dos olhos e na curva da boca a mesma senhora (todas as senhoras carregam nos traços a mesma senhora?) - daí a humanidade da vaca - ou a coisa materna. A mula é uma espécie feminina e é o certeiro mote da espécie que é feminina - sendo sempre uma outra coisa feminina de que não se pode dizer onde traz a semelhança com as demais - mesmo esta, a semelhança, havendo clara - daí a personificação - ou a coisa que não tem filhos e, portanto, que não se pode aparentar humana nas idades.
Pode-se, facilmente, confundir uma mula com um cavalo. Não com uma égua, nunca com uma égua, que trata de outro vasto departamento. E, quando se confunde uma mula com um cavalo, ela porta-se como tal, até persistindo na aproximação. Compadecemos da mula como compadecemos do cavalo que carrega um desavisado semblante masculino (este também com humanidade, porque os cavalos são sempre, de traço, de olhos e de quadril, o mesmo homem). A mula pode te ceder uma inteira cavalgada quando se acha que ela é um cavalo. E, se dermo-nos conta da mula ser uma mula a esta altura, ela desonra-nos. Há o risco duma mula amedrontar um indivíduo numa certa ocasião descuidada: se se aproxima da mula acreditando ser um cavalo e der por conta de ser mula no preciso desfecho dela lhe estar de soslaio - à rara fenda de sua personalidade - ela vai ameaçá-lo e espantá-lo em irrefutável desonra. Um indivíduo desonrado por uma mula leva cerca de quatro dias para retomá-la ao bem do estado comum de pasmaceira. Durante os quatro dias, a mula mantém-se incapaz de parecer cavalo e pratica no indivíduo um distanciamento forçoso - nos quatro dias ela preserva hábitos assemelhados aos do bode.
Toda mula traz características virginianas.
A mula não é teimosa, é correta e metódica, paciente e sabida, tendo demasiada propriedade daquilo que pratica.
A mula parece teimosa até que entendamos o que há de seu feminino a guardar-se de masculino.
Ao contrário dos cavalos, as mulas não esticam os olhos docemente ao horizonte quando correm, as mulas olham para perto. Isto porque não podem esperar filhotes.



Nelson G.

dossiê dum milhão de mulas



Um milhão de mulas tristes purgam feridas.
Um coração adormece, um outro se esconde do sangue, 999.998 comem da longa alameda de um só coice na paisagem. Por necessidade de depuração que só a ata depurada faz-se ao necessário do bicho.
Porém antes da necessidade prática, faltará amplidão ao que é necessário:
Reter caminhos, vozes e dores rentes e poentes. É a carga. A carga.
Quem vê de perto os olhos de uma mula de carga
vê também todo o resto do mundo se despedaçando em palhas queimadas e queimaduras-palhas e paúras tantas: A carga.
São olhos de uma saudade cheia de hematomas no quentume.
Olhos que piscam com a mesma velocidade da palha despedaçada em mundos e paúras já em método de cinza abrasada em queimaduras tantas insistindo o pirilampear no céu, não quer cair, não se entrega, não apaga o pairar.
Olhar delicado, trinco dum sono, trincada porcelana de mau gosto do sal atirado pelo vento.
Uma mula é um antitemplo onde as orações também são mulas e a resignação, por conhecimento e encampação, é o único esquelético milagre no pico e no sopé do que seja milagroso;
na mula até o milagre precisa de um milagre porque a carga. A carga.
A mula foi condicionada a não ver estrelas nem borboletas muito embora saiba e force um ignorar (tudo num mesmo tempo que é o tempo de mula, tempo cargueiro em mesmices) isso de que elas sim, as borboletas e as estrelas a vêem, a perseguem esbanjando levezas, cardume puritano de rastros de grandezas que longe e que longe.
Mulas não sentem flores nem picadas de abelhas e no lugar nu de em sentir, sentem um do que como se fosse esse sentir, como se pisassem com a língua e andassem com o vago e sendo isso e dessa maneira, mulas não sabem do capim o sabor que ruminam e às vezes nem se enfrentam do ruminar o mato ruminando o tanto de chistes que o destino lhes picam feito picão ferrado de abelha em flor.
Seus Senhores raspam-lhes as feridas com cacos de telha, já que alguém disse que telha é cicatrizante, mas só pra mula, esse bicho quiromante. O Sol e o Sal completam o curativo.
E eis que as mulas cantam, Meu Pai!
As mulas, na madrugada do sertão, nas pequeníssimas matinas argilosas cantam pedras, poeira e a reta dos homens. A carga.
Dizem que essas árias flutuam feito torpes orbes, ararinhas faiscantes e então explodem em sequiosos flocos de um sertão em algodão que tem a pele à pele e da pele reza o chão,
eterno namorado da mula, bicho menos ativista que eu já vi.



Julinha D.